Colegiado diz que muro é ‘segregacionista’ e ‘símbolo do fracasso da política de dispersão” apoiada também por Tarcísio de Freitas. Em visita ao local na segunda (20), o grupo disse que as condições de atendimento dos usuários de drogas são péssimas. Entre as recomendações está a instalação de banheiros, pontos de água e chuveiros no local. O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), e o muro erguido por sua gestão na Rua General Couto de Magalhães.
Montagem/g1/PMSP/Secom/Willian Moreira/EstadãoConteúdo/Ato Press
O Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool (Comuda) publicou nesta terça-feira (21) uma carta em que afirma que a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) em São Paulo “demonstra grave violação de direitos e abuso de autoridade” na construção do muro de 40 metros de extensão na região da Cracolândia, no Centro da capital paulista.
Conforme o g1 revelou, o muro de 2,5 metros de altura cerca parte do local onde usuários de drogas se concentram na Rua General Couto de Magalhães, região da Santa Ifigênia, perto da estação da Luz. Ele foi construído em maio do ano passado no bairro. Antes, já havia tapumes de metal no local.
✅ Clique aqui para se inscrever no canal do g1 SP no WhatsApp
Segundo o Comuda – que é composto majoritariamente por ONGs, entidades da sociedade civil, vereadores, deputados estaduais e alguns representantes das secretarias municipais – o muro evidencia o que o conselho chama de “fracasso de uma política de drogas segregacionista, que demonstra a falta de transparência em relação à política sobre drogas municipal”.
“A gestão Ricardo Nunes, com o apoio do governo Tarcísio de Freitas, apostou na política de dispersão da Cracolândia, seguindo o objetivo já fracassado em dar fim à famosa cena de uso de drogas”, diz o documento.
E acrescenta: “Atualmente a prefeitura insiste em dizer que o número de pessoas na região diminuiu – contagem que desconsidera o aumento da cena no período noturno, mas a criação do muro na região do fluxo evidencia o fracasso da política de dispersão: além de espalhar os usuários pela cidade em novas pequenas cenas de uso, o fato é que a Cracolândia não deixou de existir”.
Prefeitura de São Paulo nega ao STF que muro na Cracolândia cause confinamento
Segundo o Comuna, “a centralidade da abordagem focada na segurança pública e ações policialescas e revistas íntimas impede o cuidado das pessoas que estão ali”.
A construção de um muro não é uma solução, tampouco sua destruição o é. É preciso garantir direitos, desde o acesso à água até o acesso à moradia digna. Não se trata apenas de ser encaminhado para serviços da rede de atenção psicossocial, mas de poder ser atendido ali mesmo, como idealizamos na proposta de um Centro de Convivência para a região da Luz.
Formado por 27 membros, o Comuda realizou uma visita técnica no local na segunda-feira (20) e disse que falta no espaço serviços públicos que realmente tratem aqueles grupos com dignidade.
“Para além do muro, Direitos Humanos básicos não são garantidos pela Prefeitura de São Paulo. Não há sequer um espaço de sombra no local, não existe nenhum banheiro – os usuários relataram fazerem suas necessidades nas vias públicas e há apenas um ponto de fornecimento de água potável no local – instalado somente dia 20/01/25 durante a visita”, disse o grupo.
“As equipes de saúde e assistência ficam nas bordas da cena, não podendo oferecer nenhum tipo de atividade de convivência que possa vincular os usuários às equipes. A maciça presença de forças policiais – equipes especiais da GCM (IOPE), Polícia Civil e Polícia Militar – chamou a atenção da Comissão, bem como a câmera do Smart Sampa, com visão de 360 graus direcionada ao fluxo. Vale dizer que o trabalho da segurança pública é desarticulado pela atuação da saúde e da assistência”, afirmou.
Defensoria gravou GCMs ‘escoltando’ usuários até área de muro na Cracolândia em SP
“O muro é o símbolo de uma política de drogas segregacionista, que demonstra a falta de transparência em relação à política sobre drogas municipal, tendo em vista que as decisões sobre a região são tomadas sem a devida discussão com o conselho municipal”, apontou o colegiado.
O g1 procurou a gestão Nunes para comentar o assunto, mas não recebeu retorno até a última atualização desta reportagem.
Recomendações urgentes
Para além das críticas, o Comuda fez uma recomendação para que a gestão Nunes possa melhorar o atendimento dos usuários de drogas na região. Entre elas estão:
Instalação imediata em quantidade adequada de banheiros, chuveiros e pontos de oferta de água potável no local;
Instalação de espaço de abrigamento do sol;
Criação de um Centro de Convivência que comporte os usuários da cracolândia, que atue na lógica da baixa exigência, na perspectiva da redução de danos e do cuidado em liberdade;
Que ações de redução de danos sejam autorizadas a acontecerem no local;
Que os profissionais dos serviços de saúde tenham insumos de redução de danos para distribuir às pessoas que usam drogas (preservativos, piteiras, protetores labiais, entre outros), tendo em vista que a política municipal de álcool e outras drogas é ampla e não deve, apenas se pautar pela abstinência;
Criação de espaço de uso seguro de drogas como foi sugerido na 8a Conferência Municipal de Políticas sobre Álcool e Drogas;
Criação de Grupo de Trabalho que envolva COMUDA/SP, Ministério Público, Defensoria Pública e Gestores Públicos.
Políticas intersetoriais que promovam o diálogo entre as Secretarias Municipais, inclusive com a Segurança Pública.
Na carta, o Conselho Municipal também afirma que a atual política de drogas da prefeitura está levando as cenas de uso para outros locais da cidade.
“Acracolândia não está acabando e os usuários de drogas não estão deixando de usar substâncias psicoativas. A cracolândia está se espalhando por toda a cidade e região metropolitana de São Paulo. Diferentes cenas de uso a céu aberto estão espalhadas pelo centro de São Paulo – na visita da Comissão foi observada uma cena de uso na Rua do Triunfo, quase da mesma proporção onde se encontra o fluxo da cracolândia (Rua dos Protestantes) e em diferentes regiões”, disse.
“Na região da zona norte, no bairro do Tremembé, grupos de justiceiros composto por moradores da região praticaram violência e tentam expulsar usuários de drogas da região, causando mais vulnerabilidade para a população local e para os usuários”, afirmou o documento.
Muro no STF
Prefeitura de SP constrói muro de 40 metros de extensão e confina Cracolândia
A discussão sobre o muro da Cracolândia foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). No início da semana, o ministro Alexandre de Moraes, deu o prazo de 15 para o procurador-geral da República, Paulo Gonet, se manifestar sobre a ação que pede a demolição do muro construído na Cracolândia pela Prefeitura de São Paulo.
Na terça-feira (21), a prefeitura respondeu ao STF que a construção do muro não teve o objetivo de segregar as pessoas em situação de rua e que a sua demolição trará danos irreversíveis.
O muro, com 40 metros de extensão e 2,5 metros de altura, cerca o local onde usuários de drogas se concentram na região da Santa Ifigênia, perto da estação da Luz. A construção foi revelada na semana passada pelo g1 e gerou forte repercussão. Antes, já havia tapumes de metal no local.
O prefeito Ricardo Nunes (MDB) reiterou à imprensa nesta terça que “não existe confinamento” e que o espaço “está totalmente aberto”, com um corredor onde profissionais da assistência social e da saúde conseguem passar para atender os usuários.
“Ali já tinha um tapume e só tirou o tapume porque tinham áreas pontiagudas que machucavam as pessoas. Algumas pessoas chegaram a se cortar lá. Tirou o tapume e colocou o muro”, disse Nunes.
Segundo a prefeitura, desde agosto de 2023, os usuários estão concentrados na Rua dos Protestantes, onde o muro foi construído. Entre janeiro e dezembro de 2024, houve redução de 73,14% na média de pessoas no local.
Parlamentares do PSOL acionaram o STF pedindo a derrubada do muro. O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, pediu, então, esclarecimentos ao governo municipal.
Em sua resposta à Suprema Corte, Nunes alegou que “a construção do muro não visou segregar, excluir ou restringir o direito de ir e vir das pessoas em situação de rua. Pelo contrário, a medida tem caráter preventivo e protetivo, buscando evitar acidentes, especialmente atropelamentos considerando o estado de extrema vulnerabilidade de muitos frequentadores da região”.
No documento, a prefeitura afirmou ainda que “a execução de ordem para destruição do muro teria efeitos e danos irreversíveis”. E acrescentou que “não procede à alegação de ‘confinamento’ de quem quer que seja” e que a obra está em “consonância com o princípio da dignidade humana”.
Na segunda (20), ao ser indagado sobre o assunto, Ricardo Nunes (MDB) tinha minimizado a ação dizendo achar “lamentável fazer com que um ministro do STF, com tanta ocupação,” tenha que se manifestar sobre o caso.
O prefeito disse que, quando soube da ação, achou “estranho um ministro do STF mandar uma notificação pra um prefeito para perguntar de um muro” (veja vídeo abaixo).
‘Lamentável um ministro do STF ser provocado por uma situação de discurso político’, diz Nunes sobre ação contra muro na Cracolândia
Ação no STF
Muro na Cracolândia
Deslange Paiva/g1
Na ação, os parlamentares do PSOL argumentaram que a construção isola e exclui socialmente as pessoas que vivem na Cracolândia, violando direitos fundamentais da Constituição, ferindo princípios de igualdade, liberdade e acesso a direitos essenciais.
A prefeitura, no entanto, afirmou à Suprema Corte que a ação “apresenta exclusivamente afirmações retóricas, sem a mínima demonstração documental de que estariam ocorrendo as violações a direitos que alega. Tampouco demonstra minimamente a existência de algum perigo de dano”.
A gestão municipal explicou ainda que as intervenções realizadas na região são acompanhadas de “uma série de medidas complementares, como o oferecimento de serviços de acolhimento, tratamento de saúde mental, reinserção social e acesso a programas de assistência social”.
Os usuários de droga ficam aglomerados atrás do muro, construído na Rua General Couto de Magalhães, em uma área formada pela Rua dos Protestantes e a Rua dos Gusmões, que são cercadas pela gestão municipal com gradis. (Veja mapa ao final desta reportagem.)
Com o muro e os gradis, a região vira um triângulo cercado. Em tese, os usuários são livres para sair e entrar no local, mas, segundo ativistas, são direcionados pelos guardas civis sempre para a mesma área.
Tapumes metálicos foram substituídos por muro na Cracolândia
Reprodução/Prefeitura de SP
A prefeitura explicou ao Supremo que o muro foi construído em maio de 2024 para substituir tapumes metálicos, que “eram danificados e ofereciam risco de ferimentos às pessoas em situação de vulnerabilidade, moradores e pedestres, além de prejudicar a circulação nas calçadas”.
O governo ressaltou que o acesso ao local permanece aberto, e que a estrutura foi projetada de modo a não inviabilizar ou dificultar o acesso de profissionais de saúde, assistência social e organizações humanitárias que prestam serviços essenciais à população local, como assistência e atendimento médico.
Segundo a prefeitura, entre janeiro e dezembro de 2024, “as ações da prefeitura no local resultaram em 19.026 encaminhamentos para serviços e equipamentos municipais. Nesse período, 679 pessoas alcançaram autonomia financeira, 308 conquistaram autonomia de moradia e 261 reconstruíram vínculos familiares”.
A prefeitura alegou ainda que os gradis também têm por objetivo formar um corredor de serviços para facilitar o trânsito de veículos de serviço e de ambulâncias, que são acionadas corriqueiramente.
Prefeitura de SP constrói muro na Cracolândia
Arte/g1